Escusam-se muitos de
não poderem ser caridosos, alegando precariedade de bens, como se a caridade se
reduzisse a dar de comer aos famintos, dar de beber aos sedentos, vestir os nus
e proporcionar um teto aos desabrigados.
Além dessa caridade,
de ordem material, outra existe - a moral, que não implica o gasto de um
centavo sequer e, não obstante, é a mais difícil de ser praticada.
Exemplos? Eis alguns:
Seríamos caridosos
se, fazendo bom uso de nossas forças mentais, vibrássemos ou orássemos
diariamente em favor de quantos saibamos acharem-se enfermos, tristes ou
oprimidos, sem excluir aqueles que porventura se considerem nossos inimigos.
Seríamos caridosos
se, em determinadas situações, nos fizéssemos intencionalmente cegos para não
vermos o sorriso desdenhoso ou o gesto desprezível de quem se julgue superior a
nós.
Seríamos caridosos
se, com sacrifício de nosso valioso tempo, fôssemos capazes de ouvir, sem
enfado, o infeliz que nos deseja confiar seus problemas íntimos, embora sabendo
de antemão nada podermos fazer por ele, senão dirigir-lhe algumas palavras de
carinho e solidariedade.
Seríamos caridosos
se, ao revés, soubéssemos fazer-nos momentaneamente surdos quando alguém,
habituado a escarnecer de tudo e de todos, nos atingisse com expressões
irônicas ou zombeteiras.
Seríamos caridosos
se, disciplinando nossa língua, só nos referíssemos ao que existe de bom nos
seres e nas coisas, jamais passando adiante notícias que, mesmo sendo
verdadeiras, só sirvam para conspurcar a honra ou abalar a reputação alheia.
Seríamos caridosos
se, embora as circunstâncias a tal nos induzissem, não suspeitássemos mal de
nossos semelhantes, abstendo-nos de expender qualquer juízo apressado e
temerário contra eles, mesmo entre os familiares.
Seríamos caridosos
se, percebendo em nosso irmão um intento maligno, o aconselhássemos a tempo,
mostrando-lhe o erro e despersuadindo o de o levar a efeito.
Seríamos caridosos
se, privando-nos, de vez em quando, do prazer de um programa radiofônico ou de
T.V. de nosso agrado, visitássemos pessoalmente aqueles que, em leitos
hospitalares ou de sua residência, curtem prolongada doença e anseiam por um
pouco de atenção e afeto.
Seríamos caridosos
se, embora essa atitude pudesse prejudicar nosso interesse pessoal, tomássemos,
sempre, a defesa do fraco e do pobre, contra a prepotência do forte e a usura
do rico.
Seríamos caridosos
se, mantendo permanentemente uma norma de proceder sereno e otimista,
procurássemos criar em torno de nós uma atmosfera de paz, tranquilidade e bom
humor.
Seríamos caridosos
se, vez por outra, endereçássemos uma palavra de aplauso e de estimulo às boas
causas e não procurássemos, ao contrário, matar a fé e o entusiasmo daqueles
que nelas se acham empenhados.
Seríamos caridosos se
deixássemos de postular qualquer benefício ou vantagem, desde que
verificássemos haver outros direitos mais legítimos a serem atendidos em
primeiro lugar.
Seríamos caridosos
se, vendo triunfar aqueles cujos méritos sejam inferiores aos nossos, não os
invejássemos e nem lhes desejássemos mal.
Seríamos caridosos se
não desdenhássemos nem evitássemos os de má vida, se não temêssemos os salpicos
de lama que os cobrem e lhes estendêssemos a nossa mão amiga, ajudando-os a
levantar-se e limpar-se.
Seríamos caridosos
se, possuindo alguma parcela de poder, não nos deixássemos tomar pela soberba,
tratando, os pequeninos de condição, sempre com doçura e urbanidade, ou, em
situação inversa, soubéssemos tolerar, sem ódio, as impertinências daqueles que
ocupam melhores postos na paisagem social.
Seríamos caridosos
se, por sermos mais inteligentes, não nos irritássemos com a inépcia daqueles
que nos cercam ou nos servem.
Seríamos caridosos se
não guardássemos ressentimento daqueles que nos ofenderam ou prejudicaram, que
feriram o nosso orgulho ou roubaram a nossa felicidade, perdoando-lhes de
coração.
Seríamos caridosos se
reservássemos nosso rigor apenas para nós mesmos, sendo pacientes e tolerantes
com as fraquezas e imperfeições daqueles com os quais convivemos, no lar, na
oficina de trabalho ou na sociedade.
E assim, dezenas ou
centenas de outras circunstâncias poderiam ainda ser lembradas, em que, uma
amizade sincera, um gesto fraterno ou uma simples demonstração de simpatia,
seriam expressões inequívocas da maior de todas as virtudes.
Nós, porém, quase não
nos apercebemos dessas oportunidades que se nos apresentam, a todo instante,
para fazermos a caridade.
Por quê?
É porque esse tipo de
caridade não transpõe as fronteiras de nosso mundo interior, não transparece,
não chama a atenção, nem provoca glorificações.
Nós traímos,
empregamos a violência, tratamos ou outros com leviandade, desconfiamos,
fazemos comentários de má fé, compartilhamos do erro e da fraude, mostramo-nos
intolerantes, alimentamos ódios, praticamos vinganças, fomentamos intrigas,
espalhamos inquietações, desencorajamos iniciativas nobres, regozijamo-nos com
a impostura, prejudicamos interesses alheios, exploramos os nossos semelhantes,
tiranizamos subalternos e familiares, desperdiçamos fortunas no vício e no luxo,
transgredimos, enfim, todos os preceitos da Caridade, e, quando cedemos algumas
migalhas do que nos sobra ou prestamos algum serviço, raras vezes agimos sob a
inspiração do amor ao próximo, via de regra fazemo-lo por mera ostentação, ou
por amor a nós mesmos, isto é, tendo em mira o recebimento de recompensas
celestiais.
Quão longe estamos de
possuir a verdadeira caridade!
Somos, ainda,
demasiadamente egoístas e miseravelmente desprovidas de espírito de renúncia
para praticá-la.
Mister se faz, porém,
que a exercitemos, que aprendamos a dar ou sacrificar algo de nós mesmos em
benefício de nossos semelhantes, porque "a caridade é o cumprimento da
Lei."
Calligaris,
Rodolfo. Da obra: As Leis Morais.
8 edição. Rio de Janeiro, RJ:FEB. 1998.
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